Expansão das fintechs expõe fragilidades jurídicas e ameaça confiança no mercado de recebíveis
Ausência de cláusulas essenciais, garantias frágeis e falta de rastreabilidade têm levado fintechs e FIDCs a disputas judiciais, elevando o risco de perdas bilionárias e minando a credibilidade do setor.
O mercado de crédito estruturado vem crescendo em ritmo acelerado no Brasil. Só os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) administravam R$ 353 bilhões em patrimônio líquido até junho de 2024, segundo dados da Anbima — um salto de 40% em cinco anos. Ao mesmo tempo, as fintechs de antecipação de recebíveis já respondem por mais de 15% do crédito concedido a pequenas e médias empresas, de acordo com levantamento do Banco Central.
Mas, por trás do avanço, há uma bomba-relógio: falhas jurídicas na formalização de contratos, garantias e governança estão resultando em disputas judiciais e perdas expressivas para investidores e credores. Dados da Serasa Experian apontam que a inadimplência em operações de crédito empresarial bateu R$ 160 bilhões em 2023, parte dela ligada a vícios contratuais que impedem a recuperação dos valores.
“A expansão tecnológica trouxe velocidade, mas não substitui a solidez jurídica. Muitos gestores estão descobrindo tarde demais que não adianta ter uma plataforma sofisticada se a operação nasceu com lacunas legais”, afirma Patrícia Maia, sócia do Barbosa Maia Advogados, escritório especializado em recuperação de ativos de segunda e terceira linha.
Erros que se repetem
Entre os equívocos mais frequentes, Patrícia lista:
- Contratos simplificados demais, sem cláusulas de inadimplência específicas ou penalidades proporcionais.
- Garantias frágeis ou mal registradas, como imóveis e veículos sem averbação ou duplicatas sem aceite formal.
- Falta de rastreabilidade, com ausência de documentação que comprove a origem e a titularidade do crédito.
- Desalinhamento entre risco e governança, em que fundos prometem alta rentabilidade sem mecanismos jurídicos à altura.
“É comum encontrarmos fundos com carteiras de milhões em recebíveis que não resistem a uma contestação judicial básica. O problema não está apenas na cobrança, mas na origem da operação: muitos contratos já nascem juridicamente inválidos”, diz Patrícia.
Impacto sistêmico
A fragilidade não é apenas uma questão de perdas isoladas. Para especialistas, há risco de abalo sistêmico na confiança do mercado de recebíveis. Quando um FIDC ou fintech quebra, pequenos empresários perdem acesso ao crédito e investidores sofrem com calotes que poderiam ser evitados.
Segundo levantamento da Uqbar, consultoria especializada em securitização, os FIDCs registraram aumento de 23% nas chamadas de capital em 2023 — reflexo da dificuldade em honrar obrigações por causa de inadimplência ou falhas na cobrança.
“O efeito cascata é perigoso. O investidor perde confiança, o pequeno empresário fica sem crédito, e todo o ecossistema de antecipação de recebíveis sofre um freio. Isso poderia ser mitigado se o jurídico fosse visto como parte da estrutura de negócios, não como pós-venda”, reforça Patrícia Maia.
Profissionalização como saída
Para a advogada, a solução passa por um choque de profissionalização. “Recuperar crédito é sempre uma batalha técnica, mas se a estrutura nasce frágil, essa guerra está perdida de antemão. É preciso integrar o jurídico desde a modelagem das operações, criar garantias executáveis e investir em compliance documental”, defende.
O Barbosa Maia Advogados atua justamente no ponto mais sensível do mercado: a recuperação de créditos de segunda e terceira linha, quando fundos, fintechs e securitizadoras já tentaram cobrar sem sucesso. “É nesse ambiente de maior complexidade que mostramos como a estrutura jurídica faz diferença. Muitos prejuízos poderiam ser evitados se o setor adotasse a mentalidade preventiva desde o início”, conclui
NÚMEROS DO CRÉDITO E RECEBÍVEIS NO BRASIL
- R$ 353 bilhões – Patrimônio líquido dos FIDCs em junho de 2024 (Anbima).
- +40% – Crescimento em cinco anos do patrimônio dos fundos de recebíveis.
- 15% – Participação das fintechs no crédito concedido a PMEs (Banco Central, 2024).
- R$ 160 bilhões – Inadimplência em operações de crédito empresarial em 2023 (Serasa Experian).
- 23% – Alta nas chamadas de capital em FIDCs em 2023 (Uqbar).
- 27% – Crescimento nos processos na CVM relacionados a falhas de governança em fundos de recebíveis (2024)